30/12/2017

Fuga abstrata do tempo

De Fernando Pessoa:

"Quando vim primeiro para Lisboa, havia no andar lá de cima de onde moravamos, um som de piano tocado em escalas, aprendizagem monotona da menina que nunca vi. Descubro hoje que,  por processos de inflitração que desconheço, tenho ainda nas caves da alma, audiveis se abrem a porta la de baixo, as escalas, repetidas,  da menina hoje senhora outra, ou morta e fechada num lugar branco onde verdejam negros os cipestres.

Era eu criança, e hoje não o sou; o som, porem,é igual na recordação ao que era na verdade, e tem, perenemente presente, se se ergue de onde finge que dorme, a mesma lenta teclagem, a mesma ritmica monotonia. Invade-me de o considerar ou sentir, uma tristeza difusa, angustiosa, minha.

Não choro a perda da minha infancia: choro que tudo, e nele a (minha) infancia se perca. É a fuga abstrata do tempo, não a fuga concreta do tempo que é meu, que me dói no cerebro fisico pela recorrencia repetida, involuntaria, das escalas do piano lá de cima, terrivelmente anonimo e longinquo. É todo o misterio de que nada dura que martela repetidamente coisas que não chegam a ser musica, mas são saudade, no fundo absurdo da minha recordação."

(em Livro do Desassossego)