Trata-se aparentemente de uma aula inaugural que Borges ministrou sobre a literatura norte-americana, e o fato dele ter escolhido Hawthorne como foco sempre me deixou curioso. Bastou ler estas poucas páginas para entender a visão diferenciada e contundente que Borges teve sobre toda a obra de Hawthorne (do qual a Letra Escarlate nem seria o mais importante, na visão dele).
Nestas breves linhas, pelo menos duas novas pesquisas iminentes surgiram: conhecer o personagem Wakefield (Borges discorre rapidamente sobre seu enredo) e também outros contos do autor, agora com um novo foco oferecido (como sempre) pela visão borgeana.
Trecho citado por Borges:
Li vários fragmentos do diário que Hawthorne escreveu para distrair sua longa solidão; referi, ainda que brevemente, dois contos; agora lerei uma página do Marble Faun para que vocês ouçam Hawthorne. O tema é aquele poço ou abismo que, segundo os historiadores latinos, abriu-se no centro do Fórum e em cujas cegas profundezas atirou-se um romano, armado e a cavalo, para aplacar os deuses.
Reza o texto de Hawthorne:
"Admitamos — disse Kenyon — que este seja o lugar exato onde se abriu a caverna, aquela em que o herói se atirou com seu bom cavalo. Imaginemos o enorme e escuro buraco, impenetravelmente fundo, com vagos monstros e rostos atrozes olhando cá para cima e enchendo de horror os cidadãos que em sua borda se debruçavam. Sem dúvida, estava cheio de visões proféticas (cominações de todos os infortúnios de Roma), de sombras de gauleses, de vândalos e dos soldados francos. Pena ter sido tapado tão depressa! Eu daria qualquer coisa por uma olhada.
"Penso — disse Miriam — que não há pessoa que não lance um olhar nessa fenda, em momentos de sombra e abatimento, ou seja, de intuição.
"Essa fenda — disse seu amigo — era apenas uma boca do abismo de escuridão que está abaixo de nós, em toda a parte. A substância mais firme da felicidade dos homens é uma lâmina interposta entre esse abismo e nós e que sustenta nosso mundo ilusório. Não é necessário um terremoto para rompê-la; basta apoiar o pé. Devemos pisar com muito cuidado. Inevitavelmente, no final afundamos. Foi um tolo alarde de heroísmo o de Cúrcio, quando tomou a dianteira e se atirou nas profundezas, pois Roma inteira, como vemos agora, caiu aí. O Palácio dos Césares caiu, com um estrondo de pedras desabando. Todos os templos caíram, e depois atiraram milhares de estátuas. Todos os exércitos e os triunfos caíram, marchando, nessa caverna, e soava a música marcial enquanto se precipitavam..."